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APAGA-DOR
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É que eu sonhei ser professora
Pessoa educadora dos deseducados do Brasil
Mas onde já se viu?
Pretender o impretendível?
Educar o ineducado
Mesmo que seja aprazível
Virar do avesso o irreversível
Tentando fazer sensível
Quem já não sente mais nada...

Mulé, é muita burduada,
É pancada atrás de pancada
É levantar e cair de novo
Esperando o pão com ovo
Que se tiver sorte te sobra...

Eu não pretendo a grande obra
O grande feito, a descoberta
Eu só deixei minha porta aberta
Pra esses meninu entrar surrindo

Mas é que eles nun entra
Eles têm dente e nun ri
Mas também como pidi
Que eles invente alegria
No meio dessa sangria
Latejada de oração,
Sonorizada por canhão
Decorada de tiro ao alvo
Que nun deixa nem a salvo
A merenda do minino (?)

Meus minino nun é burro não
Eles nun têm é sorte
Vieram caindo do Norte
Nesse trem sem passaporte
Com o coração aventureiro

É que disseram maravilhosa
Essa cidade de janeiro
Com os braço do Cristo ao vento
Servindo de documento
Aberto feito o meu peito
Um tanto quanto sem jeito
De se abrir além da conta

A gente vai ficando calejada
Quando chega a uma certa idade...

Eu perdi a minha identidade
Só me alembro ser professora
Mas quem me espia tão sofredora
Nem acredita que eu fui letrada

Eu aprendi a tabuada
Dois mais dois igual a quatro
Cinco dedo nessa mão
Com mais cinco dessa outra... sei mais não...
Eu já perdi as conta...

Eu já nun ensino é nada...
Pra que serve a tabuada
O quadro negro, o apagador (?)

Me adisculpe, seu senhor
Nun é mais quadro negro
É quadro afro-descendente...
E o apagador ... nun apaga a dor...

A dor do parto da menina...
Me diz como é que ensina
A colocar o treco no marido (?)
Como é que fala essa coisinha
A burracha molhadinha
Que invita gravidez (?)
Camikase, comiquase, Camisinha...

Ai, que vergonha, saminina...
Eu falando palavrão...
Benze Deus, benze Deus
E si os minino nun acredita em Deus?
E se eles acredita na grobalização?
Pode não, pode não,
Tem que fingir pluralidade
Tem que ter respeito às diferença...

Mas minha crença me falava que respeito
Era outra coisa...
Minha crença tava errada, igual que tava a tabuada
De quem calcula o meu salário...


Professora é operário?
Mas nun tem féria, nun tem horário
Nun tem tempo pra acomodação
É tanto caderno pra olhar,
É tanto pobrema pra arresolver
E eu que nunca fui das matemática
Subtraio em aula prática as alegria da profissão

Ética é o que meu irmão?
Diz pra mim como é que ensina
Como é que pratica a rima
Da justiça, da solidariedade?

Tu me dá que idade?
45, com certeza...
Pois errou, seu gentileza
Tenho 25 mais 10 de profissão...
É que essas marca na cara
Eu ganhei de um bofetão
Que um aluno me deu...

Era aula de português
E eu castigava na gramática
Com essa coisa burocrática
Pra falar bonito o que vem de dentro...

Deu-se que eu nun mi agüento
E esbanjei vocabulário
E o minino revolucionário
Disse que eu tava ultrapassada...

Me chamou de antiga, de desclassificada
Me acusou de querer matar o mause, o saite,
Uma tal de Internet...
Eu nem sei que é mãe dessa net...

Escuite, nun acabô não
Antes de me dar o bufetão
Ele me ameaçou de morrer.
Agora ocê vê...
Onde é que as coisa foram parar
Eu querendo educar
E o minino já formado pela vida...

Vou fazer o que, querida?
Vou chorar? Vou disistir?
Vou deixar de ser professora?
Se eu nun ensino vem uma tal de net a toa
E rouba toda uma vocação...


Eu nun sei o que fazer mais não...
Eu preciso é de ajuda...
Mas home, nun me acuda
Só por pena ou por esmola...

Antes de sentir piedade
Lembra que eu fiz sua escola
E que se hoje tu vive
Esbanjando essas sacola
Chamada de notiabuk, de lasp top
É purque lá no começo
Eu te dei o primeiro toque
Eu te ensinei a primeira lição

Agora que o tempo passou
Eu não tenho mais servidão?
Pois se alguém me der a mão
Eu se alevanto, eu aprendo...
Eu invento coisa nova, eu trago os minino de volta
Pras coisas boa dessa vida...
Educar é a minha sina
Ser professora é a minha lida...

E a sua história vai pra onde?
Onde é que ocê esconde
Sua parcela de responsabilidade?
Eu até que tenho boa vontade
Pra explicar essa lição...
Mas é que eu perdi a identidade
Quando cheguei nessa cidade
Pra falar de Educação...

É que eu sonhei ser professora
Pessoa educadora dos deseducados do Brasil...

Mulé, é muita burduada
É um tanto de pancada
Que até a alma passa mal

E daí que a coisa começou errada (?)
Se a gente se ajuntar...
Óia que nóis muda esse final.


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AMOR PARA UM ANTI-HERÓI
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Eu quero um amor displicente
Que às vezes até esqueça que ama
Que não durma junto, na mesma cama,
E que nem ligue quando a saudade bater
Eu quero um amor sedento por viver
Ainda que os cenários de um
Sejam, para o outro, impensáveis
Eu quero um amor de gestos reprováveis
Que ninguém entenda, que ninguém aceite
E que quando chegar, eu mesmo o rejeite
E implique com ele pra me fazer de vilão...
Eu quero um amor que não perturbe o coração
Que não acelere os batimentos
Que não seja cantado em versos
Nem confidenciado em cartas
Eu quero um amor de alpercatas
Com pisada firme e cheiro de rua...
Não quero nada que destrua
A santa paz do meu dia a dia
Não quero um amor de romaria
Que me coloque num andor
E que chore por mim em devoção
Eu quero um amor de trazer na mão
Com rédeas bem amarradas
Como convém a quem galopa
Eu quero um amor que bata na porta
Que pergunte se pode entrar
E que ao ouvir um “não”
Não insista com sentimentalidades
Eu quero um amor de verdade
Não esse de novela das oito
Reprisado no Vale a pena Ver de Novo.
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Amor para um anti-herói é resultado de uma etnografia realizada com garotos de programas e travestis entre 2003-2004 em Copacabana, Rio de Janeiro. Procura refletir um traço observado no discurso dos sujeitos referente ao desapego emocional, ao não comprometimento com relações afetivas de longa duração e, sobretudo, a divisão entre razão e sentimento, estando o último subjugado ao primeiro. Contraditoriamente, esses discursos insistem na existência de uma possibilidade futura de amor, nos moldes de um "novo romantismo". Trata-se de um amor que está além das subjetividades então apresentadas, fora dos padrões atualmente consumidos. Um amor que de tão diferente não é amor... é uma outra coisa que significa algo parecido, sendo, contudo, maior, diferente, particular e imponderável. Um amor individualizado e comandado por predisposições próprias, fora das regras, livre de condicionamentos sociais.
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O GUARDADOR DE ESTRANHOS
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Eu não sou daqui, sou de longe
Sou de todos o que menos fui
E o que mais precisei ser
Sou da noite, da festa, do samba
Sou aquele que dança
Até a alma ficar bamba
E que não foge da roda
Quando abrem a ciranda
Sim, sou da chuva,
Do mar e do vento
Sou da escola mais verde e mais rosa,
Da poesia, da prosa, do lamento
Sou da alegria, da lágrima e da tristeza
Mas comigo ninguém pode
Nem plebe, nem realeza
Se a boca seca, eu bebo gim
Se o olho fecha eu sonho sim
E quero ver quem me convence
A viver fora de mim
Sou poeta e vagabundo
Sou jogador jogado no mundo
E não há nenhuma chance
De mudar quem seja assim
Minh'alma é desbotada
Perdeu a cor na alvorada
Se entregou de madrugada
A uma boca de batom carmim.
Eu cuido das coisas do mundo
Mas e depois? Quem cuida de mim?
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SEM SAPATOS
Eu gosto mesmo é de bagunça
De subir na mesa do bar
E dar show de graça
Em praça pública
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Eu gosto de beijo roubado
De mão na perna por debaixo da toalha
Gosto de cantar alto e desafinado
E quando alguém critica
Meu prazer é dizer, - coitado,
Melhor cantar assim do que ser mudo
.
Meu mundo tem sempre um segundo
E tudo muda de repente em mim
Quando rio é porque por dentro choro
E quando choro é de tristeza mesmo
.
Adoro poesia aos gritos
Quanto mais alto, maior é meu prazer
Só tenho medo é de perder
As rédeas do meu destino
Porque apaixonado
Eu sou burro e nem pareço divino
.
Sim, gosto de brincar de ser Deus
Crio e recrio pessoas que não existem
E pinto de amarelo e roxo
As que têm cara de cinza
.
Aprendi a ouvir sinos quando beijo
E fazer poesia quando amo
Mas na falta de amor, nunca de ensejo,
Vou levando adiante meu violão
.
Meu tempo é o hoje
Minha sina é a paixão
.
Se quiser me seguir
Tire os sapatos...
Não quero despertar
Com meus atos de criar
A fúria de quem vive dizendo
Que o homem não nasceu para pecar.
.
Santo? Nunca fui!
Nem quero ser...
Bom mesmo é ser um Gato Maracajá...
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POR UM SEGUNDO
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Tira de mim esse gosto de libertinagem
Aplaca minha sede de carícias
E antes que o dia acabe
Insulte a saudade vadia
Abrindo lentamente
O ziper da minha calça.
.
Se quiser usar a minha anatomia
Abuse da bebida e do cigarro
Fume a minha febre,
Beba o meu prazer
E apertando bem as minhas costas
Arranhe os meus sonhos
Com suas unhas de fetiche.
.
Venha, meus olhos de azeviche,
Usufrua do meu ser conforme queira
Aprende a apagar essa fogueira
Antes que o incêndio tome conta de mim
.
Isso... Me desvela assim...
Agora goza... Eu espero.
Beija o meu rosto devagar...
Eu sou tua por um segundo
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Amanhã? Só o tempo dirá
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VERSO E REVERSO
Procuro por mim no reverso do que sou ou fui,
Mas não me encontro diante de meus olhos cerrados...
Os anjos da Igreja escorreram pelos telhados
E no altar da antiga honraria há salivas
De um pedido não realizado.
.
Não sou mais devoto de nenhum Deus
Pois descobri que o Senhor sou eu
E por mim eu faço milágrimas
.
Se sou o que fui, já não sei
Se sou o que posso, me revolto
E mudo a mão da contramão de mim
.
Sem espelhos, sem amarras
Sem sonhos dormidos em outras camas
Sonho em mim, dentro e fora,
E se morro vivo pleno o agora.
.
Se eu pudesse mudar de lado
Fazia o relógio andar pra trás
E num jogo de sinais matava Deus e o Diabo.
.
Sem bem, sem mal,
Sem certo ou errado
Só comigo, só com a Lua
Pecador e Perdoado.